quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

FUTEBOL ACADÊMICO

















Estudando o futebol como parte do meio social em que está inserido, é possível fazer uma analogia entre sua regulamentação e a regulamentação do convívio social mais amplo. Há um conjunto de regras escritas e um código de condutas não-escrito que que estabelecem as relações entre participantes e entre quem assiste. Como diz Johan Huizinga:




"(...) esta sistematização e regulamentação cada vez maior do esporte implica a perda de uma parte das características lúdicas mais puras. Isto se manifesta nitidamente na distinção oficial entre amadores e profissionais (que implica na separação entre aqueles para quem o jogo não é o jogo dos outros, por sua vez, são considerados superiores, apesar da sua competência inferior. O espírito do profissional não é mais o espírito lúdico, pois lhe falta espontaneidade, a despreocupação."

Os conceitos de liberalismo e de liberdade política, a partir dos ideais iluministas do século XVIII, foi reinterpretado segundo cada realidade: para cada caso específico, um arcabouço legal é criado ou modificado, quer seja para proteger, quer seja para punir, ou mesmo os dois. Diversas vezes, a liberdade foi justificativa da repressão, como é comum nos regimes autoritários, por mais contraditório que isso possa parecer. Cada grupo, ou mesmo cada pessoa vê a liberdade segundo seu próprio ponto de vista, de acordo com suas próprias experiências. E mesmo se pondo no lugar do outro, não é fácil justificar suas opiniões.

As transformações nas regras e na prática do jogo percorreram caminhos semelhantes à regulamentação social, especialmente no mundo capitalista, em especial se for considerada a intervenção estatal. Sempre que se burla ou se age pelas brechas das regras, se faz necessária alguma atitude que proteja a dignidade e o mínimo de de concorrência saudável, e mesmo quando não há desvio de conduta, novas regulamentações surgem para fazer da disputa mais dinâmica e leal.

Para ilustrar o exposto, basta lembrar recentes mudanças nas regras do futebol (limitação do recuo para o goleiro, ampliação do número de substituições, simplificação do impedimento, entre outras), comparando-as com regras econômicas (intervenção ou retirada do Estado da economia, limitação de monopólios e carteis, alterações na legislação trabalhista), todas para adaptar a conduta de quem joga com a lisura do jogo.O jogo é atemporal e universal, mas como a sociedade, não escapa das regulamentações específicas de cada período. A lei de um período pode até alcançar todas as pessoas de um dado período, mas dificilmente ela perpassa incólume por vários períodos, e mesmo quando elas são necessárias para o benefício coletivo, há sempre quem se sinta atingido e a rejeite. As mudanças citadas demonstram isso.

E tal como um reflexo social, a disputa incorpora novos rituais e visões de mundo de cada um praticante ou espectador assim que o tempo avança. O futebol se expandiu consideravelmente pelos cinco continentes, mas não de forma simultânea e homogênea: a frase "se joga como se vive", muito comum na Argentina, cai bem, com o cuidado de não se cair em estereótipos: a proletarização do jogo na Inglaterra ocorreu em um período de obtenção de avanços na legislação social; a popularização no Brasil e na Argentina se deu em um momento de discussão sobre a formação de uma identidade nacional, um conjunto de símbolos e valores que representasse o país perante o chamado mundo civilizado, abraçando ou não grupos historicamente excluídos (índios e negros) ou recém-chegados imigrantes; a expansão futebolística na China é contemporânea à abertura de sua economia ao mercado mundial, contraditoriamente ao mesmo tempo em que o regime fechado politicamente permanecia quase imutável.

E uma análise coerente não poderia mesmo supor que a expansão fosse homogênea, tamanha a distância de lugares e de tempo. Mesmo essa simplificação não é válida, pois dentro desses períodos houve resistência.

E também nessa linha de pensamento, a prática do jogo se adapta à realidade de onde ele penetra. Tal como um currículo escolar, que tem um conteúdo comum geral, mas que reserva espaço para especificidades de cada realidade, e por mais que se tente, uma interpretação homogênea é improvável. As idéias de cada sociedade acerca de violência, religião, identidade coletiva e hierarquia social, entre outros se manifestam em quem joga e quem assiste.

Códigos de conduta informais nem sempre são alcançados por regulamentações de entidades formalmente estabelecidas, até porque, salvo em alguns regimes de exceção, a sociedade molda o Estado, e não o contrário. Como afirmado anteriormente, as leis são elaboradas segundo o pensamento de cada época daqueles que legislam, mas são interpretados ou burlados conforme as necessidade.

Franklin Foer, jornalista estadunidense que reuniu seus relatos de viagem no livro "Como o futebol explica o mundo: um olhar inesperado sobre a globalização" escreve, ora perplexo, ora admirado sobre a relação entre futebol, política, imigração e fé na rivalidade entre o Glasgow Rangers e o Glasgow Celtic, na Escócia; sobre a visão político-social de um torcedor ao estilo hooligan na Inglaterra; sobre a estrutura política quase feudal do futebol brasileiro, e do uso do futebol como bastião nacionalista na antiga Iugoslávia, entre outros.

Mais intrigante ainda, quando se trata do relato de um indivíduo proveniente de um país onde o futebol que o mundo conhece se chama soccer, e é tido como jogo de mulheres (por sua pouca virilidade, segundo os padrões locais), ou quando muito, de imigrantes. Foer é praticante do esporte desde criança, e por vezes deixa transparecer que está ilhado em sua própria casa. Seus escritos se assemelham a um diário de um desbravador que tenta conciliar a sua opinião com a visão das pessoas com quem se encontra na viagem. Apesar de jornalista, lida com um dilema típico do pesquisador: até que ponto não se deixar influenciar pelas fontes, ainda mais com um contato tão direto e impactante.

Está aí um relação interessante: por serem relativamente conhecidos do grande público, o que sem dúvida ajuda na divulgação, jornalistas se arriscam em escrever sobre as mais diversas áreas de conhecimento, o que gera protestos em setores acadêmicos, por um lado enciumados por serem relegados à um plano inferior quando deveriam protagonizar; e por outro, por verem suas áreas serem ocupadas por quem não tem o instrumental teórico e a metodologia de trabalho necessária para desenvolve o tema.

Sobre isso, não se deve tomar opiniões extremadas, é preciso conhecer os reais objetivos de quem escreve. Se um jurista escreve uma obra sobre o passado, não significa exatamente que ele invada o campo de atuação de um historiador, a menos que ele se proponha a fazer isso. Dentro da imprensa esportiva, há o caso oposto de ex-jogadores ocupando o posto de comentaristas, antes quase reservados à jornalistas de carreira.