segunda-feira, 9 de agosto de 2010

DEBATE DURO


Por Ricardo da Costa
www.ricardocosta.com

Um tal Mário, Einstein e a invenção da História

“A História é atualmente revista ou inventada por gente que não deseja o passado real, mas somente um passado que sirva aos seus objetivos.
Estamos hoje na grande época da mitologia histórica.”
Eric Hobsbawm (1917- )

Esse ponto é muito interessante, e posso inclusive dar um bom exemplo da equivocada utilização do passado para justificar uma visão de mundo. Nesse mesmo encontro do C.A., em uma das idéias que desenvolvi durante minha palestra afirmei que os cientistas – e os bons historiadores – buscam o conhecimento pela fruição: o prazer de descobrir, de entender, de compreender.

Para isso, citei uma série de historiadores que já afirmaram o mesmo, e com muito maior brilho do que eu. Prosseguindo na idéia, dei o exemplo dos físicos, que quando pesquisam o átomo ou os movimentos das moléculas o fazem pela busca do conhecimento em si, porque todo conhecimento é bom e vale a pena ser buscado.

Quando os organizadores iniciaram a segunda parte daquele evento, de perguntas, um graduando de História de nome Mário Antunes, pretensioso, pedante, incisivo, beirando a grosseria, foi ao microfone e se disse “bastante surpreso” (!) com minha “colocação simplista” a respeito da importância da fruição e do conhecimento em si. Além de discordar de tudo que eu tinha dito, ele disse ter ficado muito satisfeito por eu ter justamente citado os físicos, pois tinha certeza que Einstein (1879-1955) havia se arrependido amargamente de ter desenvolvido sua teoria quando os americanos lançaram as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki (1945).

Portanto, em sua idéia, o conhecimento não era bom em si, o que importava era o que fazíamos com ele, qual a sua utilização política.

Bem, em História devemos ter o hábito de checar as informações e ter certeza antes de falar (aliás, em todo debate honesto deve-se ter essa premissa). Na hora, confesso que fiquei em dúvida com a afirmação do resoluto aluno, pois tinha lido um livro de Einstein (uma coletânea de seus escritos) há alguns anos atrás em que ele não dizia nada disso, mas eu poderia me equivocar e fazer uma citação de memória.

Embora esse detalhe não afete em nada a essência do que eu disse – na ocasião afirmei que Einstein não tinha culpa de nada, pelo contrário, a energia nuclear tem muitos usos benéficos para a Humanidade – gostaria de corrigir o decidido porém desatento e mal-educado aluno, para que seu desconhecimento não seja tido como verdade: Albert Einstein, ao contrário do que disse o equivocadíssimo Mário, não se arrependeu do que estudou. Pelo contrário, no caso das bombas atômicas, Einstein DEFENDEU a atitude norte-americana de lançá-las no Japão.

Cito textualmente as palavras do físico: Convém não esquecermos que a bomba atômica foi feita neste país (EUA) como uma medida preventiva; o objetivo era evitar seu uso pelos alemães, caso eles a descobrissem.

O bombardeio de núcleos civis foi iniciado pelos alemães e adotado pelos japoneses. Os aliados deram o troco – como se constatou, com maior eficácia – e estavam moralmente justificados para fazê-lo.(EINSTEIN, 1994: 200-201).

E atenção: esse texto foi escrito por Einstein em 1947, dois anos depois das bombas terem sido jogadas no Japão!

Além disso, devo fazer outra correção de conteúdo para o pobre rapaz: a teoria da relatividade, tese que tornou Einstein famoso no mundo inteiro, serve para explicar sistemas mecânicos celestes, e não sistemas quânticos (que são os que explicam sistemas atômicos). Portanto, Einstein não é o pai da bomba atômica: seus estudos sobre o efeito foto-elétrico fazem parte de uma cadeia maior de estudos que, reunidos posteriormente por outros físicos, deram ensejo à produção atômica.

Moral da história: o bom historiador deve sempre estar seguro das informações factuais que utiliza. Assim é nosso ofício: conhecer e compreender o passado da humanidade, e não reinventá-lo de acordo com nossas convicções pessoais ou políticas, e menos ainda distorcê-lo apenas para criar uma discordância vazia para se auto-afirmar e/ou provocar um tolo debate, como fez o tal aluno Mário Antunes. Esse é o perigo de se usar a História para divulgar ideologias e visões de mundo: quem age assim tem a tendência de ser tendencioso, e distorcer o passado a seu bel-prazer para provar suas idéias.

Há quem busque o saber pelo saber: é uma torpe curiosidade.

Há quem busque o saber para se exibir: é uma torpe vaidade.

Há quem busque o saber para vendê-lo: é um torpe tráfico.

Mas há quem busque o saber para edificar, e isto é caridade.

E há quem busque o saber para se edificar, e isto é prudência.

São Bernardo de Claraval, Sobre o cantar dos cantares, Sermão 36, III.