quarta-feira, 30 de junho de 2010

COTAS: CONTRA OU A FAVOR?




Se me fizessem a pergunta do título antes de o sistema de cotas ser implantado, a minha resposta estaria na ponta da língua: sou contra. Se me fazem essa pergunta hoje, a minha resposta continua na ponta da língua, mas língua de cobra, bífida: continuo contra, mas também passei a ser a favor do sistema de cotas.

Não, não fiquei maluco nem me tornei o mineirinho da piada, que se equilibra em cima do muro para não se posicionar e não ficar mal com ninguém. O mineirinho, na verdade, não diz nem sim nem não (muito pelo contrário). Por que eu era contra antes, e continuo contra agora? Por duas razões.

Primeiro, por uma razão óbvia: o princípio básico do mérito fica comprometido. Tratam-se de maneira desigual candidatos que deveriam ser considerados como iguais frente à situação de exame. No entanto, a resposta dos defensores do sistema a essa crítica é pertinente: a sociedade já trata de maneira extremamente desigual, e desde o berço, pessoas que supostamente deveriam ser iguais (a ponto de muitas não terem sequer berço que as embale).

Minha segunda razão para ser contra responde à réplica acima. O sistema de cotas, favorecendo quem foi historicamente desfavorecido pela sociedade, como negros, índios e pobres, ataca as consequências do problema e não suas causas. Ao fazê-lo, pode ajudar a perpetuar essas causas negativas, escondendo-as sob a novidade das cotas.

A educação brasileira é um sistema de cabeça para baixo: o ensino universitário público é de razoável qualidade, enquanto a qualidade do ensino público fundamental é sofrível.

A situação do professor e da escola pública brasileira nem sempre foi tão ruim assim. No século passado, pasmem os mais jovens, fui aluno de escola pública e ela era muito boa. Em determinado momento fácil de determinar, precisamente no meio da década de 60, esse quadro começou a degringolar: a escola pública e o prestígio do professor, junto com sua condição salarial, desceram ladeira abaixo.

Na direção inversa, e paradoxalmente, rios de dinheiro público passaram a ser gastos com a compra de milhões de livros didáticos, laboratórios de informática e outras coisas, importantes, mas com o objetivo quantitativo, não qualitativo.

A lei das cotas tem função parecida: distrair a sociedade das causas do problema.
“Ataca-se" apenas a consequência do problema: o contingente enorme de alunos da escola pública que não consegue passar no exame vestibular da universidade pública. Esta universidade acaba aproveitando somente os alunos oriundos de escolas particulares (que poderiam continuar pagando pelo seu ensino), enquanto as faculdades particulares recebem os alunos oriundos das escolas públicas (que não podem pagar suas mensalidades).

A perversidade é flagrante. De certo modo, a lei das cotas a reconhece e procura atenuá-la, mas não combate a fonte geradora do problema: a má qualidade da escola pública. Creio que tais argumentos são muito fortes. Então, por que sou ao mesmo tempo a favor do sistema de cotas? Também por duas razões.

Um dos argumentos contra o sistema de cotas, que nunca me pareceu forte, era o de que se "baixaria o nível". Os resultados dos primeiros anos jogaram esse argumento por terra: o desempenho dos alunos cotistas é, em praticamente todos os institutos, igual ou mesmo superior ao dos alunos não-cotistas.

Ainda que careçam de base, de background cultural, suprem sua dificuldade com vontade, manifestando admiração pelos professores e, principalmente, pelo saber que se descortina para eles. Há pequenas distorções, claro, como usar a condição de "cotista" para reclamar que as disciplinas passam muitos livros para ler e que eles não têm nem dinheiro para comprá-los nem tempo para lê-los.

No primeiro caso, que reclamem com as autoridades universitárias para equipar melhor as bibliotecas, e que se organizem entre si para cada um comprar poucos livros onde for possível, por exemplo em sebos, mas fazê-los circular entre muitas mãos. A pior opção, ainda que a mais usual, é a do xerox indiscriminado .

(No segundo caso, é simples: tempo é um bicho subjetivo, quer dizer, tempo a gente inventa – na verdade, tem de inventar. O livro é a ferramenta básica do professor. Logo, formar uma biblioteca pessoal, lendo-a e relendo-a sem parar, é condição "sine qua non" para se tornar professor.

A segunda razão pela qual sou favorável ao sistema de cotas (mesmo sendo também contra) é porque ele me permite este artigo, isto é, ele força essa discussão. Então, se determinados políticos populistas criaram essa lei para tapar o sol com a peneira e não cuidar da indigência da educação básica brasileira, a própria lei pode se voltar contra eles, chamando a atenção para a raiz do problema.

Nesse momento, os melhores alunos desejarão se tornar professores e poderão se tornar grandes mestres, como acontece nos países em que a educação é respeitada.