Original aqui
É o Haiti
“Bonjour, blanc.”
E o menino num dos acampamentos de Porto Príncipe, onde um dia foi a residência do Primeiro Ministro, me desarma.
“Blanc”. Branco. Diferente.
Diferente dele, diferente de todos por ali. Um corpo estranho. Num lugar dos mais estranhos. Mas que, para ele, é normal. É a vida.
“Bonjour , blanc.”
Ouvi isso em todos os acampamentos em que estive nos últimos dias.
Porque sou diferente deles. Não sou negro, não sou haitiano, não vivo numa barraca.
Acampamentos que não têm esgoto a céu aberto pelo simples fato de que o esgoto não corre por ali. Fica. Empoçado, ao lado das brincadeiras das crianças, do dia-a-dia das vacas, dos porcos, das galinhas.
O nome do garoto no tal acampamento, o primeiro a me chamar de “blanc”, é Sebastian Junior. Tem 9 anos. Mora há nove meses numa barraca, com o pai e os irmãos. A mãe morreu no terremoto de 12 de janeiro.
Já estive em lugares precários. Fui ao interior da Tailândia, ao Kosovo, à Nigéria. Fui a buracos do sertão do Nordeste brasileiro. Fui a favelas em São Paulo. Não vi probreza assim.
Imagine a pior das condições de sobrevivência. Multiplique por dez.
É o Haiti.
“Vou para a escola de manhã. À tarde, estudo um pouco. E brinco com meus amigos”, diz Sebastian.
Vai à escola andando. E talvez seja mais rápido do que subir numa das caminhonetes apinhadas de gente. Porque o trânsito em Porto Príncipe não anda. É o caos.
Imagine ruas estreitas sem sinalização, com enormes crateras, cheias de pedestres, jipes, caminhões, tratores. Multiplique o número de veículos por cem. Divida a largura das ruas pela metade. Acrescente gritos, buzinas, bicicletas, motos, absoluta falta de iluminação urbana.
É o Haiti.
Ao lado da barraca de Sebastian há uma piscina. Ou o que um dia foi uma piscina do Primeiro Ministro. Hoje está cheia de tendas.
Numa delas vive Julianes Pierre. Tem 11 anos, é amiga de Sebastian. “É muito ruim viver aqui. Vivemos com dor de estômago. Quando chove, a água entra. Dormimos molhados.” É estação das chuvas.
É o Haiti.
Foram apenas quatro dias por aqui. E o tempo todo, uma pergunta vem à cabeça. É inevitável: “Como eles conseguem viver?”
Concluí que eles vivem porque não sabem que existe outro tipo de vida.
Não sabem o que é entrar num banheiro azulejado, fechar a porta, sentar em paz numa privada, tomar um banho em privacidade, escovar os dentes, sair arrumado. Não sabem o que é estar diante de uma mesa e receber uma salada, um prato cheio de comida quente, uma sobremesa. Não sabem o que é meter o dedo num interruptor e ver uma lâmpada acender.
Você já deve ter sentido isso: uma pessoa querida morre e você percebe que tantas das suas preocupações diárias não fazem o menor sentido, não têm importância, não valem nada.
Multiplique por mil.
É o Haiti.