domingo, 18 de julho de 2010

A RELIGIÃO LEIGA DA CLASSE OPERÁRIA



A interpretação ou representação singular do espetáculo e do mundo dá ao esporte dimensões gigantescas, quase que a de uma sociedade presente dentro de diversas sociedades, algo como diversos conjuntos que fazem intersecção em diversos conjuntos.

O futebol parece ter o dom de criar um universo paralelo, tanto que a FIFA, entidade máxima do futebol mundial, se gaba de ter mais membros que a Organização das Nações Unidas, e de solenemente impor sanções a federações nacionais que sofram intervenção estatal. Sua relação com os Estados pode ser a de enfrentamento, quando não aceita que seus subordinados escape de seu controle total, embora seja mais conveniente a aliança para o fortalecimento do seu poder e a quem a ele se associar.

Hilário Franco Júnior traça um paralelo entre a FIFA e o Vaticano, focando a organização hierárquica de ambos (dioceses/bispados/ paróquias e confederações/federações/clubes), e que têm em comum o fiel ou o torcedor comum como raiz. Tal como uma religião, a FIFA vive em função do torcedor, o fiel em na sua raiz.

Ou, como Franco Júnior exemplifica:

“Aceitando o futebol enquanto forma religiosa, os dogmas evidentemente são as regras que regem a sua pátria. Da mesma forma que não há judeu sem circuncisão, ou cristão sem batismo, ou muçulmano sem a shahada (‘profissão de fé’), não há futebol oficial sem as dezessete regras aceitas pela FIFA, espécie de Igreja encabeça toda uma hierarquia de arcebispados (confederações), dioceses (federações), paróquias (federações locais), inquisidores (juízes) e clérigos (jogadores filiados). O rito do futebol é praticado por um número fixo de oficiantes e inquisidores com apoio de numerosos auxiliares laicos (...), e acompanhada ppor uma multidão variada de fiéis (torcedores).”

Josep Blatter, presidente da FIFA, e Bento XVI, sumo-pontífice, sabiamente seguem os rituais de seus antecessores, João Havelange e João Paulo II de viajar como missionários espalhando a sua causa e arrebanhando mais fiéis, com uma diferença clara: o Vaticano é um Estado estabelecido, reconhecido pela comunidade internacional e guardião de uma instituição milenar (a Igreja Catolica), enquanto a FIFA é apenas a normatizadora de uma instituição que foi criada no alvorecer do século XX, e que é “guardiã” de um esporte que foi sistematizada em meados do século anterior. Não por acaso, como bem definiu Eric Hobbsbawn, o futebol seria a “religião leiga da classe operária”.

Se críticas definem a religião como alienada ou alienante, o futebol é seu correspondente laico, é tentador e simplista relacionar o esporte a um instrumento de alienação. Mas, assim como o advento da Teologia da Libertação foi um oxigênio para o hermético pensamento da cúpula eclesiástica na segunda metade do século XX, algumas posturas contestadoras foram marcantes: jogadores engajados em movimentos politizados, de personalidade forte, capazes de enfrentar dirigentes, treinadores e jornalistas recebem pechas de encrenqueiros, mesmo quando exigem direitos básicos, como pagamento de salários em dia e condições adequadas de trabalho.

A globalização do jogo trouxe consigo a globalização da imagem de pessoas e marcas, quando as primeiras não se tornam as segundas, e do atleta é cobrado que se enquadre dentro do chamado politicamente correto, tanto fora de campo como dentro dele.

Embora se admire contestadores, a hierarquia conservadora do esporte (tão conservadora quanto a cúpula romana) o faz através de discursos hipócritas que contradizem com a execração a quem submete os indesejáveis rebeldes por dentro. Religiosos reformistas, mas admirados por fiéis são elogiados após a sua morte, assim como o Vaticano fez com adeptos de correntes reformistas. A hierarquia futebolística é rígida e vertical, e por vezes arcaica, mas é sobre ela que a FIFA se sustenta, encontrando espelho nos seus filiados. Blatter, quando ainda era secretário-geral, reagiu como indiferença à proposta de criação de um sindicato internacional de jogadores: “A FIFA só dialoga com federações e confederações, não com jogadores”. Reagiu, soberba e laconicamente. Contestadores normalmente são admirados quando morrem ou mais raramente, suas idéias são aceitas.

Na doutrina católica, santos são exemplos de fé e de vida. Seus feitos e ensinamentos são espelho para gerações posteriores, mesmo que durante a sua vida, não fossem reconhecidos como tal: Joana D’arc foi queimada como herege, para depois ser canonizada somente séculos depois, enquanto a canonização de João Paulo II já era dada como certa antes mesmo de sua morte.

E ao relacionar religião e futebol, é possível encontrar a adoração como ponto em comum: um praticante, principalmente pelo seu desempenho no jogo, já é alvo de admiração por parte de seus seguidores, o que pode ampliar em face ao seu comportamento pessoal e profissional.
Curiosamente, os tipos “encrenqueiros” recebem especial admiração.

Por outro lado, santos normalmente são o são considerados após a sua morte: a morte parece reforçar a áurea de sua santidade; e jogadores idolatrados sofrem de um processo controverso após a sua retirada dos gramados, algo que mistura aumento de seu heroísmo, uma ampliação mítica de seus feitos combinada com o esquecimento de seus erros, combinado com uma certa dose de esquecimento ou negação por parte de gerações mais jovens