domingo, 29 de agosto de 2010

SOMOS RIVAIS ATÉ QUE PONTO?



A primeira, e mais tentadora resposta, reside na tão decantada rivalidade esportiva entre ambos os países, potências mundiais nos gramados. O lado ufanista e de certo ponto irresponsável da imprensa solta fanfarronices do tipo: “ganhar é bom, ganhar deles é melhor ainda” ou “nós torcemos contra eles, pois eles torcem contra nós”, são lidas e ouvidas com frequência, ditas por quem está mais interessado em apimentar um duelo que lhes garantem leitores e audiência do que propriamente expressar opinião sincera ou garantir fidelidade aos fatos.

O torcedor, de certa maneira, é tentado ao ver seus valores atingidos: atitudes provocativas, ou manipuladas de modo a parecerem, são usadas para mexer com o orgulho coletivo. O efeito disso é a troca de farpas sem que se saiba a origem. Para torcedores comuns, a primeira provocação sempre partiu do outro lado.

Recorrendo novamente a Hobbsbawn, não é ousadia afirmar que a inimizade esportiva entre os países, se levada para fora do esporte, se torna uma invenção tacanha. Os dois países não tem litígios bélicos desde meados do século XIX, e no campo diplomático, as discussões se resumem a questões econômicas e de liderança política continental, salvo alguns momentos específicos, principalmente durante períodos de exceção.

Grandes times e seleções nacionais constroem suas histórias, ou pelo menos boa parte delas, às custas de grande oponentes. “A grandeza do Inter se deve à grandeza do Grêmio”, disse certa vez, nos anos 60, um dirigente esportivo, sobre os dois grandes clubes de Porto Alegre. O mesmo vale o caso argentino, onde as rivalidades, onde as rivalidades se organizam em pares, de acordo com cidades ou regiões. O time mais próximo é prioritariamente o seu maior rival, a menos que ele não seja forte o suficiente para lhe fazer frente.

Os duelos entre River Plate e Boca Juniors são conhecidos como “super-clássicos”, e vitórias são tão importantes para suas torcidas quanto conquistas de campeonatos. Eurico Miranda, notório falastrão e ex-presidente do Vasco da Gama, afirmava que para seu time existiam dois campeonatos dentro de um só, aquele propriamente dito, e um paralelo, disputado contra o Flamengo.

Na lógica do torcedor, tão importante quanto ver o seu time ganhar, é ver o seu rival perder. Se os dois fatos forem simultâneos, melhor ainda. E assim como normalmente ocorre na política, é preciso demonizar o rival, atribuindo-lhe características que não são suas, ou potencializando as que já existem. Nos tempos de Guerra Fria, americanos e soviéticos utilizaram suas máquinas de propaganda para mostrar a sua superioridade e os defeitos do regime oponente.

Para o torcedor comum, assim como era para os estrategistas políticos, é muito importante demonstrar que não somente os seus valores esportivos são superiores, mas também os seus valores morais. Para tanto, se for preciso, se eleva conquistas esportivas ao caráter épico, transforma-se simples jogadores em guerreiros da mais alta estirpe, e por vezes, reduz as vitórias dos rivais a um mero acaso, ou fruto de uma manobra de bastidores ou manipulação de arbitragem.

No entanto, assim como na política, o inimigo pode ser um aliado circunstancial em um dado momento: na Copa de 1954, quandro brasileiros e uruguaios foram eliminados pelos húngaros, e doze anos depois, quando os argentinos foram eliminados pelos ingleses, a imprensa sul-americana adotou um discurso regionalista, afirmando existindo um complô comunista (em 1954) ou europeu (em 1966), para deter uma suposta superioridade de seleções da América do Sul. Nesse último jogo, o argentino Ratín dizia que era preciso mostrar “que na América também tem homem”.

Dentro da estratégia desmerecimento, passa, conforme descrito no parágrafo anterior, a ação de lhe estereotipar comicamente, e se isso provocar a ira de quem é “homenageado”; e quanto maior a ira, mais consolidado esse gracejo fica. As mútuas referências como “gallinas” e “bosteros”, com as quais torcedores de River Plate e Boca Juniors são jocosamente identificados, já se incorporaram a sua imagem perante os adversários em geral. Por outro lado, o apelido de “Porco”, dado ao Palmeiras, se não desapareceu como todo, perdeu um pouco de sua razão de ser, quando seus torcedores assumiram a provocação e incorporaram o mascote de tal maneira, a ponto de substituir o Periquito, mascote oficial. Além de inferiorizar moralmente o inimigo, provocações do tipo servem para irritá-lo, e o desprezo por vezes, atenua os efeitos da provocação.

Mas, paradoxalmente, a provocação carrega algo de admiração dentro de si: por mais que os ranhetas neguem, nenhum grupo de torcedores elege como seu maior rival um time muito inferior ao seu. As maiores rivalidades do mundo são entre clubes historicamente nivelados. Conforme observa Franco Júnior, e descrito anteriormente, há uma predominância de duelos citadinos, ou de localidades próximas, como se fosse um duelo pelo controle de um território. É como se a tristeza fosse mais dolorosa se ela fosse atrelada a alegria de um inimigo próximo.

Caso não haja um rival próximo à sua altura, busca-se um além de suas terras. Na Itália, a queda de rendimento do Torino, a partir da metade do século passado, transformou Milan e Inter nos grandes adversários da Juventus; e na Espanha, Real Madrid e Barcelona se tornaram os grandes rivais nacionais, na medida em que seus principais concorrentes citadinos, Atlético de Madrid e Espanyol, não conseguem acompanhar seu ritmo, principalmente o primeiro, que experimentou uma queda desde os anos 80. Vale ressaltar que a identificação dos clubes com o franquismo, o Madrid como preferido do Generalíssimo, e o Barcelona como reduto de protesto ao regime.
Derrotar um rival ou vê-lo derrotado não faz sentido sem que se veja a dor alheia.

No Brasil, há quem prefira os Campeonatos Estaduais ao Campeonato Nacional, pela maior quantidade de confrontos locais, mesmo que a qualidade do torneio seja inferior. Na Argentina, há uma série de confrontos locais (Buenos Aires, Avellaneda, Rosario, La Plata, Mar del Plata), onde a vitória sobre o inimigo íntimo ou um fracasso retumbante seu é tão comemorado como se fosse um grande feito de sua equipe. Nesse ponto, mais uma explicação de como o adversário pode se tornar um aliado pontual: quando por exemplo, Corínthians e River Plate se enfrentaram pela Taça Libertadores em 2003 e 2006, não era mesmo de se esperar que torcedores de Palmeiras e São Paulo engrossassem a torcida do Corínthians.

A derrota da equipe brasileira nos dois confrontos só reforçou os gracejos sobre o fato de o clube, ao contrário de seus rivais, nunca terem vencido o torneio E é nesse caso.
E é nesse caso (a rivalidade acentuada pela proximidade) que argentinos e brasileiros se enquadram. O bom desempenho de ambos em competições continentais e mundiais desde o seu início, somado às conquistas de seus clubes já eram por si só, motivo para a atenção, mas o protagonismo foi ainda mais acentuado com a queda de rendimento da seleção e dos clubes do Uruguai (historicamente a terceira grande força sul-americana), no último quarto do século XX.

E como a rivalidade é intrinsecamente ligada à qualidade, esta por sua vez pode vir acompanhada de admiração, conforme já tratado. Na mentalidade do torcedor, o mau momento de seu time dói ainda mais quando o seu antagonista vai muito bem, e por maior que seja o desgosto, ele se torna exemplo a ser seguido, e batido mais tarde. É como uma espécie de orgulho narcisista que implica certa comparação entre si mesmo e o outro.

Estruturalmente, o ‘narcisismo de pequenas diferenças’ é construído ao longo do tempo conforme a trajetória esportiva dos times e o comportamento de suas torcidas. Mas ele se manifesta de acordo com a conjuntura do jogo. Estudo da Universidade de Indiana encabelado por Edward Hitt mostrou que, estimulada pelo jogo, a bioquímica cerebral substâncias que leva o torcedor a refletir o desempenho de sua equipe (...)

Na partida contra a Argentina, boa parte da torcida cantou com a melodia de ‘Não chores por mim, Argentina’, uma questão que mostra a desqualificação do outro (...) ‘Nós entendemos/ Vocês estão se borrando de medo/ O cheiro chega até Berlim (...)’”

Porém, admiração e simpatia não são exatamente sinônimos, e apontar o outro como exemplo pontual a ser seguido não contradiz com o desejo de que esse exemplo não se concretiza. É isso que legitima a afirmação: “gosto da maneira como joga como jogam, mas torço para que percam.”

Em todos os casos expostos, criou-se uma lista de batalhas épicas, heróis, vilões, estratégias surpreendentes, complôs, mas acima de tudo, uma ligação entre as partes que ganha contornos cada vez mais especiais com o passar do tempo, mesmo que para isso, se exagere nos fatos ou omita passagens não muito edificantes. Os relatos orais são boa alternativa de pesquisa, mas ao escapar da documentação escrita, acaba por perder o controle de sua veracidade, por vezes.

E como o consumidor desse tipo de notícia é geralmente passional (o chamado pós-torcedor ainda é minoria), manchetes apelativas atraem ainda mais as atenções, especialmente a partir dos anos 90, quando publicações como os diários Olé e Lance surgiram e ganharam considerável espaço, com manchetes simples, capas com frases curtas e impactantes, que têm a intenção de atrair leitores que enxergam na publicação o que realmente sentem, seja no sentido da motivação, da decepção ou simples gozação.

Por mais que hajam justas críticas, esse tipo de publicação se torna referência até para outros órgãos de imprensa: quando no Brasil, se quer ressaltar aspectos negativos da imprensa vizinha, ou simplesmente se queira saber o que pensa a crônica esportiva de lá, as reportagens do Olé são as preferidas, e mostradas de modo a parecer que representam a opinião de toda a imprensa e torcida. É algo como se alguém dissesse: “eles pensam isso”, uma estratégia para se vitimizar e vilanizar o adversário. Por outro lado, quando se observa algum elogio aos brasileiros do lado argentino, isso soa como rendição diante do evidente talento. Na imprensa argentina, a vitoriosa passagem do atacante Carlos Tevez pelo Corínthians era celebrada como a conquista de um território.

Na imprensa brasileira, especialmente caso haja a análise de publicações como o Lance, que manchetes provocativas em direção ao rival também são comuns. No Mundial de 2002, a precoce eliminação argentina no torneio era celebrada com a manchete: “Não chores por mim, Argentina”, ofuscando até mesmo o confronto brasileiro contra os costarriquenhos naquele dia.

Se as relações entre os dois países forem analisadas apenas sob o ponto de vista do lado sensacionalista de suas imprensas esportivas, certamente se imaginará um mútuo ódio sarcástico. Mas, como se verá adiante, a História do esporte e as respectivas visões dele, trarão mais semelhanças do que diferenças em seus respectivos processos de desenvolvimento, e um tem muito ainda a saber sobre o outro, como descreve Alejandro Grimson:

Quando os argentinos viajam ao Brasil, quebram o estereótipo de país do carvanal; vêem a produção e a modernidade brasileira. Quando os brasileiros viajam à Argentina – a Buenos Aires, à Patagônia – se surpreendem com o uso do espaço público, com a menor violência e desigualdade social. Os argentinos são muito mais cordiais do que imaginam os brasileiros; menos soberbos do que indica o estereótipo. (...) São países que se deram as costas durante muito tempo e têm muito a aprender um do outro. Para conseguir isso, a idéia de “hermanos” não é boa. É melhor reconhecer que temos estereótipos, preconceitos e ignorância. Assim podemos mudar. “

Ao que parece, essa imagem de rival contaminou não só o torcedor comum, mas também o cidadão comum.

Inicialmente trazido para ser uma diversão interna das elites, a disseminação do futebol nas classes populares a fez reinterpretar os valores cavalheirescos até então presentes nas disputas, moldando-os à sua maneira e sua perspectiva, mais adequado ao seu modo de sobrevivência em seu meio.

Pablo Albarces vê na dinâmica do jogo, que permite a participação e a valorização de um talento interno e beneficiando um conjunto do qual faz parte o espelho de uma sociedade democrática e meritocrática.

“Esse processo, conforme descreve Archetti, recorre a caminhos distintos. Necessita de ritos de passagem: se a nacionalidade se constrói no futebol, há que se explicar o trânsito da invenção inglesa até a criolização (...) até que se faça eficaz a representação da nacionalidade, (...)frente a uma idéia de nação baseada em um panteão heróico das famílias patrícias e na tradição hispânica, o futebol fazia da nação representada por sujeitos populares (...) os heróis nacionais que os intelectuais orgânicos do futebol propuseram eram membros das clases populares relamente existentes, urabanizadas, alfabetizadas recentemente e que pressionavam (...) por instalar-se na esfera cultural e política."

Ainda de acordo com Albarces, o sentimento nacional passa pela igualdade, nem que seja imaginária, duas coisas a que gaúchos e nortistas ainda não tinham pleno acesso. E dentro do jogo, essa igualdade se liga à construção de um estilo próprio de jogo, como uma identidade esportiva nacional, algo tão manipulado quanto a identidade cívico-cultural.

No princípio combatido como pertubardor, esse estilo popular, também considerado rústico e corrompedor, barbarizado, antítese do fair play elitista na medida me que se expandia e se sobressaía ao conservador e importador e protegia seus times e selecionados além das fronteiras foi adotado como nacional e incorporado ao projeto de nação, mesmo com a regulamentação necessária.

Assim que forma criados e ganhavam corpo, os times ligados à setores populares enfrentavam o preconceito de seus pares mais abastados, para quem seus primos pobres deveriam se resignar ao papel secundário, tal como era a situação dos trabalhadores na sociedade. Os sucessos do Racing Club e do Vasco da Gama, nas temporadas de 1913 e 1923, respectivamente, sobre equipes mais tradicionais e adeptas do fair play, são marcos simbólicos para tanto.

O jogo se desinglesou, os valores sócio-esportivos eram interpretados por cada grupo que aderia ao jogo, e esse estilo chamava a atenção internacionalmente, especialmente com a criação da Copa do Mundo de Futebol, em 1930. Assim, passou a ser valorizado em momentos de sucesso e contestado em fracassos no plano interno, embora sempre admirado externamente, e ainda associado a imagem exterior da nação. Os fracassos da Argentina nas Eliminatórias para a Copa de 1970 (eliminada pelo Peru nas seletivas) e o brasileiro no Mundial de 1990 (eliminado na Segunda Fase, atuando bem abaixo do que poderia) repercutiram negativamente no plano interno, tanto que sugeria-se que o selecionado mudasse a sua postura, mas no plano externo, apenas a seleção era contestada, não o estilo em si.

A imprensa costuma se referir à Eurocopa, o torneio continental de seleções como “uma Copa do Mundo sem Brasil e Argentina”, em um evidente exagero, especialmente nas últimas décadas, quando equipes de outros continentes ganharam força perante os europeus, mas que dá às duas potências sul-americanas a exclusividade em fazer frente ao continente inventor do futebol moderno pela soberania.

Além dessa deferência, vem crescendo a arregimentação de atletas de outros países, inclusive argentinos e brasileiros, para suprir as suas carências futebolísticas. Na Copa de 2006, cinco jogadores brasileiros atuavam por outras seleções, e a tendência é de aumentar.

É exagerado, mas não é de todo equivocado.